Fusões e Aquisições: adaptação ao regramento brasileiro
Empresas
sempre foram compradas e vendidas desde que tiveram existência própria e
distinta da pessoa de seus membros. Essa prática tornou-se extremamente
utilizada em outras plagas dado o volume de transações e expansão da economia
de países desenvolvidos. Tal prática denominou-se M&A – Mergers and Acquisitions, traduzindo-se, Fusões e Aquisições.
No
estrangeiro, a prática e o grande número de transações desse tipo levou a um
grau sofisticado de especificidade e a um regramento próprio desse setor. Conforme
a evolução e aperfeiçoamento desse mercado ia acontecendo, as empresas negociantes
sentiram a necessidade de incluir em seus arranjos contratuais, no chamado contract design, cláusulas como
sandbagiging, anti-sandbaging, Mac/Mae, cláusulas especificas de prescrição e
decadência dentre outras.
Justamente
por essa enorme expertise internacional, quando o segmento de M&A começou a
florescer no Brasil, a tendência natural por parte dos operadores do direito
foi importar as experiências já vividas e minutas de contratos estrangeiros, sem
uma maior preocupação de cotejo dos institutos estrangeiros à luz da nossa
legislação. De sentir que nos Estados Unidos, tais cláusulas são bem aceitas à
luz do sistema de Commom Law que
possui uma elasticidade maior na aplicação dos institutos jurídicos bem como
dos próprios princípios atinentes àquele país – sobretudo no que toca a busca
constante pela maior liberdade econômica possível, plena liberdade de contratar
e marcado respeito aos contratos. Não se pode dizer o mesmo com relação ao
nosso sistema civil, pois a legislação codificada tende a ter um grau bem maior
de intervenção nas relações contratuais. Não que isso seja um defeito, senão
uma característica peculiar do nosso sistema.
Vamos, portanto, explicar em brevíssimas linhas, o que seria cada um desses institutos acima expostos e as razões de dificuldade na adaptação de sua aplicação perante a legislação brasileira, não sem antes fazermos um intróito ao que consiste um dos maiores problemas do M&A, qual seja, a fixação do preço do negócio.
Da
fixação do preço em operações de M&A
Uma
das grandes questões atinentes ao M&A, senão a maior delas é a fixação do
preço de uma companhia. Explique-se: o controlador ou vendedor de uma empresa
precifica-a de posse de todos os dados de sua contabilidade e por conhecer
amiúde seu ramo de negócio, ele sabe: os últimos faturamentos, seus principais
concorrentes, têm as últimas projeções do mercado. Enfim, domina seu negócio.
Já por sua vez o adquirente não conhece as estranhas da companhia e em algumas
vezes sequer opera no mesmo ramo.
De
outro lado, as partes podem ter um grande interesse no negócio e a fixação de
um preço exato no momento da venda é muito difícil, justamente em razão da
assimetria de informações entre as partes existentes no momento da venda.
Então, o tirocínio dos negociantes faz com que as partes fechem o negócio, sob
determinadas condições de preço, mas difiram uma parte do pagamento do pagamento
ou da fixação do preço definitivo para momento posterior, em que o adquirente,
já de posse da companhia, possa avaliar por inteiro o negócio e consiga fixar
de comum acordo um preço com o vendedor.
Por
outro lado, o vendedor tem sempre o receio de que “passado o bastão” para o
comprador esse último possa, por inexperiência ou outros motivos, não conhecer
seu negócio, não saber tocá-lo e em pouco tempo levar a empresa a uma baixa
considerável de seus ativos ou aumento de passivos e por conseqüência a um
declínio do preço final de venda que ficou para ser ajustado em momento futuro.
Nesse cenário, como dito, o tirocínio dos negociadores estabelece uma série de cláusulas como forma de tentar diminuir essas dores das partes contratantes e poder chegar a um bom termo do negócio. Vamos a primeira cláusula:
Cláusula
Mac/MAE
Uma
dessas cláusulas é chamada de MAC/MAE (material
adversal change ou material adversal
effect) que consiste na estipulação de que entre o fechamento do negócio e
o pagamento final do preço podem ocorrer determinados
fatores ou alterações relevantes que diminuam significativamente o preço da companhia. Fatores
esses que podem ser alterações na empresa, risco do negócio, alterações que não
estejam sob seu controle ou não previstas pelas partes. O comprador pode,
então, preenchidas as condições fazer uso da cláusula referida e não concluir a
transação ou renegociar seus termos. Podem ainda, as partes, discriminar
determinadas situações que não se enquadrariam no conceito de MAC/MAE e,
portanto, manter-se-ia o contrato válido e exigível, eis o chamado carve-out.
No
atual momento, a pandemia de COVID-19 pode ser um fator a abalar esse mercado e
provocar inúmeras alegações de MAC/MAE, pois se entre o signing e o closing ocorre a pandemia, dificilmente as partes não
utilizariam essa cláusula para poder rever o ajuste de preço da companhia dado
a recessão mundial pela qual possivelmente atravessaremos.
Por fim, comparando-se ao nosso sistema jurídico, temos por aqui a formulação da teoria da imprevisão adotada no art. 421 do Código Civil que estabelece que nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Portanto, ainda que de maneira excepcional, é possível a revisão judicial do contrato. Assim, provavelmente as cláusulas de MAC/MAE poderão ser adotadas como forma de impedimento ou não (carve-out) a revisão contratual desde que expressamente previstas as hipóteses pelas partes.
Sandbaging ou anti-sandbagging
Outra
dessas cláusula atinente ao segmento de M&A é a imposição de sandbagging. Por esta cláusula, as
partes prevêem no contrato que eventuais deficiências ou inconsistência de
informações possam gerar indenização para o comprador, mesmo que este tenha
prévia ciência da inexatidão das declarações. De outro lado, o anti-sandbagging
possui o efeito contrário de não permitir a indenização, mesmo com a ciência de
inconsistências. No sistema americano, as partes apresentam longas declaraçãoes
chamadas de “reps and warranties”
durante a negociação, ou seja, informações e documentações que permitam avaliar
de forma honesta o estado atual da companhia a ser alienada.
Outro
aspecto é o dolo bilateral à luz do
artigo 150 do Código Civil, pois se ambas as partes procederem com dolo,
nenhuma pode alegá-lo para anular o negócio ou reclamar indenização. – pois uma
parte faz declaração inexata e a outra aceita celebrar a transação mesmo
sabendo da inexatidão da declaração graças à cláusula de sandbagging, que
possibilitaria, posteriormente, a discussão.
Survival Clause
Por
fim, esse tipo de cláusula comum em contratos americanos estabelece que
determinadas matérias continuam válidas mesmo após o término do contrato.
Exemplifica-se com as chamadas claúsulas de non
compete e confidencialidade que perdurariam seus efeitos mesmo após a
conclusão do contrato. Contudo, tais cláusulas podem ser vistas, perante o
nosso direito, como pactos acessórios ao contrato principal. Em outros países,
algumas vezes as partes usam essas cláusulas de sobrevivência para estender o
prazo de determinadas obrigações contratuais, o que pode afrontar nosso sistema
jurídico que possui regras inflexíveis e
de ordem pública no que concerne a prazos prescricionais. Portanto, a
depender da matéria eventuais cláusulas poderão ser invalidadas judicialmente.
Em
princípio, temos como válida a tentativa de importação de cláusulas ou
institutos de direito da commom law
para o nosso sistema em sede de M&A,
em razão da maior intensidade negocial e autonomia das partes existente em
alguns desses países. Pelo grande número de negócios e conseqüentes problemas
daí advindos houve uma natural evolução daquele sistema em comparação ao nosso
quando em sede de M&A. Todavia, se por um lado tais soluções jurídicas se
mostram boas para aqueles países, por outro aspecto, passamos a ter o busílis
de aclimatar estes institutos ao nosso ordenamento. E quase sempre isso não se
dá sem problemas. Assim, a mera tradução de contratos sem aclimatação desses
institutos ao nosso sistema legal acaba por poder trazer mais malefícios do que
benefícios. Contratos extensos, com regulamentação amiúde e com termos não
adaptáveis ao nosso sistema podem gerar mais conflitos do que contratos curtos
mais comuns aos latinos, acostumados á maior intervenção estatal.
Curioso
notar o caso trazido no evento M&A da FGV (Oxbow Carbon Minerals Holding x
Crestview) em que a Corte de Delaware afirmou que o poder interpretativo de uma corte não pode usar, por exemplo, o
princípio da boa-fé para reescrever um contrato e dar maior proteção contratual
a uma das partes quando o contrato tem uma solução expressa para isso.
Segundo o Prof. Levi-Minzi, a interpretação não pode ocorrer, quando não há
lacuna.
Na
verdade, quando ouvimos uma afirmação dessas achamos estar diante de uma grande
novidade em que uma Corte não interferiu num contrato. Só nos olvidamos que
isso já está incrustado como brocardo jurídico há séculos em nosso sistema civil law, qual seja: “in claris non fit interpretatio”. O
problema é que com o passar dos anos e com as transformações de nossa
sociedade, fomos nos esquecendo dos princípios rígidos que nos trouxeram até
aqui. Com o tempo, a legislação foi se tornando cada vez mais interveniente
para atender a complexidade e o aumento das relações sociais. O desafio é
buscar o equilíbrio aristotélico, pois a justiça do caso concreto é sempre boa,
mas também não podemos nos esquecer de que a forma garante contra o arbítrio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário