terça-feira, 8 de junho de 2021

                            Fusões e Aquisições: adaptação ao regramento brasileiro


Empresas sempre foram compradas e vendidas desde que tiveram existência própria e distinta da pessoa de seus membros. Essa prática tornou-se extremamente utilizada em outras plagas dado o volume de transações e expansão da economia de países desenvolvidos. Tal prática denominou-se M&A – Mergers and Acquisitions, traduzindo-se, Fusões e Aquisições.

No estrangeiro, a prática e o grande número de transações desse tipo levou a um grau sofisticado de especificidade e a um regramento próprio desse setor. Conforme a evolução e aperfeiçoamento desse mercado ia acontecendo, as empresas negociantes sentiram a necessidade de incluir em seus arranjos contratuais, no chamado contract design, cláusulas como sandbagiging, anti-sandbaging, Mac/Mae, cláusulas especificas de prescrição e decadência dentre outras.

Justamente por essa enorme expertise internacional, quando o segmento de M&A começou a florescer no Brasil, a tendência natural por parte dos operadores do direito foi importar as experiências já vividas e minutas de contratos estrangeiros, sem uma maior preocupação de cotejo dos institutos estrangeiros à luz da nossa legislação. De sentir que nos Estados Unidos, tais cláusulas são bem aceitas à luz do sistema de Commom Law que possui uma elasticidade maior na aplicação dos institutos jurídicos bem como dos próprios princípios atinentes àquele país – sobretudo no que toca a busca constante pela maior liberdade econômica possível, plena liberdade de contratar e marcado respeito aos contratos. Não se pode dizer o mesmo com relação ao nosso sistema civil, pois a legislação codificada tende a ter um grau bem maior de intervenção nas relações contratuais. Não que isso seja um defeito, senão uma característica peculiar do nosso sistema.

Vamos, portanto, explicar em brevíssimas linhas, o que seria cada um desses institutos acima expostos e as razões de dificuldade na adaptação de sua aplicação perante a legislação brasileira, não sem antes fazermos um intróito ao que consiste um dos maiores problemas do M&A, qual seja, a fixação do preço do negócio.

Da fixação do preço em operações de M&A

Uma das grandes questões atinentes ao M&A, senão a maior delas é a fixação do preço de uma companhia. Explique-se: o controlador ou vendedor de uma empresa precifica-a de posse de todos os dados de sua contabilidade e por conhecer amiúde seu ramo de negócio, ele sabe: os últimos faturamentos, seus principais concorrentes, têm as últimas projeções do mercado. Enfim, domina seu negócio. Já por sua vez o adquirente não conhece as estranhas da companhia e em algumas vezes sequer opera no mesmo ramo.

De outro lado, as partes podem ter um grande interesse no negócio e a fixação de um preço exato no momento da venda é muito difícil, justamente em razão da assimetria de informações entre as partes existentes no momento da venda. Então, o tirocínio dos negociantes faz com que as partes fechem o negócio, sob determinadas condições de preço, mas difiram uma parte do pagamento do pagamento ou da fixação do preço definitivo para momento posterior, em que o adquirente, já de posse da companhia, possa avaliar por inteiro o negócio e consiga fixar de comum acordo um preço com o vendedor.

Por outro lado, o vendedor tem sempre o receio de que “passado o bastão” para o comprador esse último possa, por inexperiência ou outros motivos, não conhecer seu negócio, não saber tocá-lo e em pouco tempo levar a empresa a uma baixa considerável de seus ativos ou aumento de passivos e por conseqüência a um declínio do preço final de venda que ficou para ser ajustado em momento futuro.  

 Nesse cenário, como dito, o tirocínio dos negociadores estabelece uma série de cláusulas como forma de tentar diminuir essas dores das partes contratantes e poder chegar a um bom termo do negócio. Vamos a primeira cláusula:

Cláusula Mac/MAE

Uma dessas cláusulas é chamada de MAC/MAE (material adversal change ou material adversal effect) que consiste na estipulação de que entre o fechamento do negócio e o pagamento final do preço podem ocorrer determinados fatores ou alterações relevantes que diminuam significativamente o preço da companhia. Fatores esses que podem ser alterações na empresa, risco do negócio, alterações que não estejam sob seu controle ou não previstas pelas partes. O comprador pode, então, preenchidas as condições fazer uso da cláusula referida e não concluir a transação ou renegociar seus termos. Podem ainda, as partes, discriminar determinadas situações que não se enquadrariam no conceito de MAC/MAE e, portanto, manter-se-ia o contrato válido e exigível, eis o chamado carve-out. 

No atual momento, a pandemia de COVID-19 pode ser um fator a abalar esse mercado e provocar inúmeras alegações de MAC/MAE, pois se entre o signing e o closing ocorre a pandemia, dificilmente as partes não utilizariam essa cláusula para poder rever o ajuste de preço da companhia dado a recessão mundial pela qual possivelmente atravessaremos.

Por fim, comparando-se ao nosso sistema jurídico, temos por aqui a formulação da teoria da imprevisão adotada no art. 421 do Código Civil que estabelece que nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Portanto, ainda que de maneira excepcional, é possível a revisão judicial do contrato. Assim, provavelmente as cláusulas de MAC/MAE poderão ser adotadas como forma de impedimento ou não (carve-out) a revisão contratual desde que expressamente previstas as hipóteses pelas partes.    

Sandbaging ou anti-sandbagging

Outra dessas cláusula atinente ao segmento de M&A é a imposição de sandbagging. Por esta cláusula, as partes prevêem no contrato que eventuais deficiências ou inconsistência de informações possam gerar indenização para o comprador, mesmo que este tenha prévia ciência da inexatidão das declarações. De outro lado, o anti-sandbagging possui o efeito contrário de não permitir a indenização, mesmo com a ciência de inconsistências. No sistema americano, as partes apresentam longas declaraçãoes chamadas de “reps and warranties” durante a negociação, ou seja, informações e documentações que permitam avaliar de forma honesta o estado atual da companhia a ser alienada.

 Em nosso sistema jurídico, tais cláusulas podem apresentar complicadores especialmente na questão referente à boa-fé objetiva, pois se a parte tinha ciência da inexatidão das informações, porque celebrou o contrato e depois pediu indenização com base nessas mesmas inexatidões?

Outro aspecto é o dolo bilateral à luz do artigo 150 do Código Civil, pois se ambas as partes procederem com dolo, nenhuma pode alegá-lo para anular o negócio ou reclamar indenização. – pois uma parte faz declaração inexata e a outra aceita celebrar a transação mesmo sabendo da inexatidão da declaração graças à cláusula de sandbagging, que possibilitaria, posteriormente, a discussão. 

 

Survival Clause

Por fim, esse tipo de cláusula comum em contratos americanos estabelece que determinadas matérias continuam válidas mesmo após o término do contrato. Exemplifica-se com as chamadas claúsulas de non compete e confidencialidade que perdurariam seus efeitos mesmo após a conclusão do contrato. Contudo, tais cláusulas podem ser vistas, perante o nosso direito, como pactos acessórios ao contrato principal. Em outros países, algumas vezes as partes usam essas cláusulas de sobrevivência para estender o prazo de determinadas obrigações contratuais, o que pode afrontar nosso sistema jurídico que possui regras inflexíveis e de ordem pública no que concerne a prazos prescricionais. Portanto, a depender da matéria eventuais cláusulas poderão ser invalidadas judicialmente.

 Conclusão

Em princípio, temos como válida a tentativa de importação de cláusulas ou institutos de direito da commom law para o nosso sistema em sede de M&A, em razão da maior intensidade negocial e autonomia das partes existente em alguns desses países. Pelo grande número de negócios e conseqüentes problemas daí advindos houve uma natural evolução daquele sistema em comparação ao nosso quando em sede de M&A. Todavia, se por um lado tais soluções jurídicas se mostram boas para aqueles países, por outro aspecto, passamos a ter o busílis de aclimatar estes institutos ao nosso ordenamento. E quase sempre isso não se dá sem problemas. Assim, a mera tradução de contratos sem aclimatação desses institutos ao nosso sistema legal acaba por poder trazer mais malefícios do que benefícios. Contratos extensos, com regulamentação amiúde e com termos não adaptáveis ao nosso sistema podem gerar mais conflitos do que contratos curtos mais comuns aos latinos, acostumados á maior intervenção estatal.    

Curioso notar o caso trazido no evento M&A da FGV (Oxbow Carbon Minerals Holding x Crestview) em que a Corte de Delaware afirmou que o poder interpretativo de uma corte não pode usar, por exemplo, o princípio da boa-fé para reescrever um contrato e dar maior proteção contratual a uma das partes quando o contrato tem uma solução expressa para isso. Segundo o Prof. Levi-Minzi, a interpretação não pode ocorrer, quando não há lacuna.

Na verdade, quando ouvimos uma afirmação dessas achamos estar diante de uma grande novidade em que uma Corte não interferiu num contrato. Só nos olvidamos que isso já está incrustado como brocardo jurídico há séculos em nosso sistema civil law, qual seja: “in claris non fit interpretatio”. O problema é que com o passar dos anos e com as transformações de nossa sociedade, fomos nos esquecendo dos princípios rígidos que nos trouxeram até aqui. Com o tempo, a legislação foi se tornando cada vez mais interveniente para atender a complexidade e o aumento das relações sociais. O desafio é buscar o equilíbrio aristotélico, pois a justiça do caso concreto é sempre boa, mas também não podemos nos esquecer de que a forma garante contra o arbítrio.

 

 

 

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